Resposta à Zero Hora – 20/03/08
Nesta Páscoa, neste Pessach que se aproxima, nesta virada de ano para os astrólogos, quando um novo equinócio mostra um novo período, queria convidar a todos para um momento de reflexão.
A Páscoa celebra a vida, o renascimento, seja na tradição cristã, seja na tradição judaica ou mesmo na tradição "pagã" da astrologia.
Ela celebra, na realidade, a entrada na primavera (originariamente no hemisfério norte), quando a vida brota e não se esconde mais, como foi no inverno, quando a terra, ainda prenhe de vida, se prepara para um novo despertar, escondendo-se dentro de si, guardando a vida para todos e para reflorescer exuberante mais um período.
Para nós que buscamos direitos para aqueles que não têm voz, como é o caso dos animais, é um momento de celebrar a vida e buscar o despertar de todos para que passem a respeitar a todos os seres por seu valor intrínseco. Manifestamo-nos para que possam considerar outro papel para esta vida que ainda não é respeitada (e reconhecida como tal!);para que nosso papel na natureza seja diferente do predador que temos sido até aqui.
Para nós que optamos pelo vegetarianismo ético todos os dias são dias de todos os seres. Para nós todos merecem respeito e buscamos mostrar isto sem impor àqueles que ainda não pararam para pensar no quanto de injustiça e violência há na relação do homem para os demais seres e para com a natureza.
A maioria dos vegetarianos aqui no Brasil nem sempre foi vegetariano, mas um dia pudemos perceber que no simples ato de alimentação existia muita violência que é a violência que subsiste em todo o ato de subjugação de seres indefesos.
Percebemos que nossa cultura se apoiava na exploração de seres mais frágeis do que nós e mudamos. Mudamos nossos hábitos e muitos de nós tentamos apenas mostrar aquilo que a cultura não permite mostrar. Outros apenas buscam um lugar de respeito para suas práticas e filosofias, o que nem sempre é fácil, num mundo que nos discrimina e exclui.
Sabemos que ninguém tem força doutrinária para mudar ideologias e convencer os outros de valores alheios. Se fosse assim todos os cristãos seriam amorosos, cheios de compaixão para com o próximo, mesmo para com o "inimigo" e também os judeus viveriam o lado mais elevado do judaísmo e viveriam para receber a luz de Deus em seu esplendor e compartilhá-la com todos os seres e o mesmo dizer de muitas ideologias que buscam impor valores que não vingam, porque estes valores têm que ser alimentados por cada um, Conhecidos por cada um e jamais se engendram a partir de uma lógica racional, uma lógica meramente intelectual, calcada na dominação e competitividade.
Hoje saiu na Zero Hora que nós vegetarianos neste afã de mostrar a violência que subsiste em comer (e usar) animais seríamos agressivos.
Para nós é agressivo as pessoas se acotovelarem no mercado público na "semana santa" para comprarem um peixe ainda vivo que se debate num tanque frio e que sofre antes de morrer. Antigamente, pelo menos a sexta-feira santa era preservada e guardava-se o jejum.
Para nós é agressivo separar um filhote da mãe para tirar o máximo de lucro de seus ubres. Para nós é extremamente agressivo confinar, cortar o bico de uma ave e privar-lhe do elemento mais primário da vida que é poder escolher sua própria comida. Para nós é agressivo alguém obter lucros montando num animal encurralado que não tem outra escolha e algumas vezes são apenas filhotes!
Para nós é agressivo fazer sofrer quem não pode se defender; é agressivo deixar cavalos morrerem de exaustão ou inanição e não fazer nada!
Também é agressivo dizer que vegetarianos que querem proteger seres inocentes da dominação e sofrimento causados pelo poderio humano (que é imenso comparado ao dos animais que só podem sobreviver livres em seus habitas naturais) são agressivos!
Para nós isto tudo sim é agressivo. Sabemos, temos plena consciência de que deve ser muito difícil ou complicado psicologicamente perceber-se sujeito de tamanha agressão para com a natureza inocente, mesmo "sem querer", e manter-se da mesma forma, passivo, e indiretamente conivente com a violência.
Mesmo não sendo nossa intenção, agredir, vamos continuar tentando mostrar o que a cultura não permite. Também vamos continuar mostrando que há outras opções que não implicam crueldade ou exploração e cada vez mais vozes hão de somar-se às nossas.
Alguns veículos (da mídia) estão a serviço desta violência.
É isto que a Zero Hora mostra a todo instante. A maioria das vezes ela está ao lado dos pecuaristas ricos que não vêem limites em sua expansão e que hoje acabam até com a Floresta Amazônica. Ela também está do lado das feiras que usam animais para obterem lucros ao que chamam de esporte e que nós chamamos de covardia! Eles não vêem violência e agressividade nenhuma nisso! Quando somos notícia é para nos ridicularizar ou criticar. Este é o espaço que nos reservam, o do desrespeito, da piada, do ridículo!
Não temos dinheiro para competir com a Aracruz, nem dinheiro para competir com grandes corporações como a Unilever, Johnson e Johnson, Procter & Gamble, Nestlé (e outras poucas fora destas grandes corporações) que comportam mais de 90 % dos produtos que se encontram nos supermercados. Empresas estas que agridem a natureza, que fazem testes em animais (a grande maioria destes testes não são impostos por nenhuma lei que as obrigue!). Muitos destes testes servem para alimentar a fútil vaidade humana e estas empresas pagam regiamente a propaganda na Zero Hora, RBS, Globo, por mais que isto seja redundante!(A redundância estaria em pensar que são coisas diferentes!) Estas empresas também pagam a outras emissoras que direta ou indiretamente incentivam rodeios e a violência que há nestas práticas e interesses que não são os nossos que queremos apenas preservar e cuidar a todos com zelo, respeito e dignidade! O nosso excesso é mostrar a dura realidade e nos acusam de agressivos!?
Não temos como pagar uma propaganda, mesmo uma que não mostrasse a realidade que existe no "simples hábito" de comer carne! (E se tivéssemos será que teríamos este espaço ?)
Agora é um período em que em muitos lugares as empresas patrocinam a violência que se disfarça de diversão ou esporte e vemos famílias pagando para assistir animais sendo domados, laçados, amarrados por adultos que querem ganhar um troféu. E como é que não vêem a agressividade disso ? (Não vemos nisso se não a inércia cultural reproduzindo cenas que não se justificariam no homem com o acúmulo cultural , tecnológico e mesmo ético que conseguimos construir ao longo destes milênios de civilização, herança cultural e espiritual de tantos pensadores que têm nos brindado com elementos da mais fina reflexão moral.) Para nós estes espetáculos pouca diferença representam das arenas do Coliseu romano que levava multidões para verem rolar o sangue de inocentes, apenas por diversão.Aqueles escolhiam o desfecho final com o polegar conduzindo à morte ou à liberdade e atualmente não há sequer a escolha da liberdade, já que todos pagam para ver tornando-se cúmplices de toda dor física ou psicológica que subjaz nestes espetáculos.
A lógica perversa desta exploração criou uma regra invisível que vê somente a agressividade que está na verdade que ousamos denunciar! Para nós a cena da vaquinha malhada aparentemente feliz da propaganda de margarina é de uma perversidade imensa, porque ela mostra o oposto da realidade que de fato existe. Ela esconde o animal traído pela mão humana que o alimenta somente para retirar-lhe o sangue, o leite, a pele, à força , a prole, a vida ! E chamam a isso de “progresso” !Não podemos mostrar o momento em que ela lamenta a separação de seu filhote ou o momento em que vê o fim que lhe cabe! Há inúmeras outras cenas destas que nossa cultura esconde e que não poderiam mais ser toleradas . Isso tudo existe e não conseguimos ficar alheios. Em algum canto da nossa mente há um gemido de dor, um olhar acuado que implora que façamos alguma coisa!
Em algum canto de nossa alma vivenciamos esta dor que há no animal ferido covardemente acuado e encurralado por outra espécie em situação de vantagem que se diz e se pensa menos animal que os demais, mas que age de forma desumana ! Face nossa própria impotência perante esta força que perpetua esta crueldade, lançamos nossa voz no lugar destes que têm sido dominados, encurralados, explorados e tantas palavras que dariam o sentido à nossa "violência".
Muitos de nós sabemos que isto acontece por força de um grande condicionamento cultural e mesmo aqueles mais poderosos com recursos, com "conhecimento" , com condições de bancar propagandas em horário nobre, vêem em seus hábitos, apenas algo saudável. Sabemos até que muitos destes jornalistas, cronistas e outros que nos criticam são apenas fruto de sua cultura, igualmente sujeitados pela tremenda força que ela exerce sobre todos. Foi assim no passado com os que estavam do lado do racismo, da escravidão, do sexismo e tantos hábitos que hoje são considerados crimes. Aos que questionavam a ordem imposta pelos que detinham o poder cabia a prisão, o exílio ou o lugar do ridículo! Aqueles que defendiam a honra no machismo, ou a tortura do escravo, ou mesmo o que hoje chamamos violações de direitos humanos, vítimas da mesma cegueira cultural que lhes condicionava, cabiam muitas vezes a honra ou distinção.Eles chamam a isto de diversão e liberdade ! Nós vemos nisto condicionamento e covardia, mesmo que inconsciente na maioria dos casos, mesmo quando não recebem lucros desta exploração que acarreta o sofrimento de animais.Desculpem, mas é covarde subjugar quem não pode se defender para obter qualquer tipo de proveito próprio, mas é a nós que chamam de agressivos quando ousamos mostrar as cenas que de fato existem no consumo destes animais que queremos proteger.
Onde está a Zero Hora quando as empresas apelam às carências humanas mais profundas e arraigadas para venderem seus produtos a despeito do mal que possam estar fazendo à saúde, ou mesmo à psique humana já fragilizada pelas desigualdades sociais e econômicas a que estamos submetidos?
Nós estamos além desta dicotomia que a ordem estabelecida criou no discurso do saudável e não-saudável (e também não teremos lucros com remédios depois!), mas sabemos que isto tudo é muito "natural"! Faz parte da cultura; foi profundamente naturalizado na cultura ocidental, a ponto de seres adultos esquecerem que há sangue no churrasco do domingo ou no peixe da Sexta-feira Santa (e para nós nada santa!). Esquecem até de jejuar como suas tradições religiosas pregam. O bacalhau é o álibi da festa, do peixe vendido ainda vivo no mercado, da diversão que sangra e acorrenta, tudo muito "natural" a ponto de esquecerem que há dor em muitos produtos que são produzidos a partir dos animais e há exploração injusta dos animais e da natureza. Há dor, medo e sofrimento mesmo que o algoz humano a engendrar esta dor seja inconsciente ou passivo nesta ação.
Cabe uma última palavra que é a que eu gostaria que refletissem junto com a noção da vida livre que é aprisionada para o "bem-estar" humano (que nem sempre bem faz a si e aos outros nesta "relação"), que é o sentido da liberdade tão valorizada em nossa cultura. Não somente a liberdade que seqüestram dos animais que deveriam ser e estarem livres, assim como tudo que as atitudes "humanas" têm tomado dos animais e da natureza.Também há a liberdade que retiram de si próprios, porque não há liberdade no condicionamento social.
No momento em que descobrirmos o que nossa cultura nos sujeitava fazer, perpetuando o hábito de matar para comer, buscamos outro caminho, outra via, a via ética do vegetarianismo; libertamo-nos do jugo da cultura. Tornamo-nos livres, livres para escolher sermos vegetarianos, veganos e até mesmo não vegetarianos. Até ali não sabíamos ainda o que era liberdade diante da cultura que reprime outras opções diferentes daquelas que a ordem estabelecida perversa e silenciosamente impõe. E sabemos também que os que vingam impor caminhos nesta cultura são aqueles que estão bem acima dos oprimidos. Ao libertar-nos, pudemos optar por outras formas de ser e de viver, mesmo que sejamos alvo das piadas de alguns que não percebem além da vida "normal" e limitada a que estão sujeitados.
Os poucos que conseguem impor condutas ou normas é que obtêm o lucro, o prazer, o prestígio e o poder neste universo social desigual, geralmente à custa do trabalho , exploração e sacrifício de muitos. Mas há um elemento em que são tão sujeitados quanto os dominados que é a falsa percepção de liberdade que cultuam, já que são talhados igualmente pela cultura e mesmo que sua posição seja confortável neste lugar de dominação que ocupam, não são livres. Liberdade é um valor que é muito caro principalmente para os que estão no topo destas relações de dominação. A liberdade que cultuamos é diferente da liberdade que eles endeusam. Nós queremos a liberdade para todos, não somente para nós, por isto buscamos a força da lei, da Justiça, mais do que da propaganda livre, do comércio livre que pode vender e comprar o sangue e o sofrimento dos inocentes. Propaganda que poucos têm acesso, mas que fica disfarçada de uma falsa liberdade, já que ela é também um produto que somente alguns podem comprar. Para nós, animais não são comércio, são natureza a ser respeitada e protegida e caberia a nós o papel de preservá-los e protegê-los do jugo destes que querem explorar, escravizar e torturar.
Para nós é esta cultura da violência que não percebe a injustiça e abuso em seus hábitos que permite que o forte subjugue o fraco. Somos livres hoje para sermos diferentes daquilo que a matriz cultural que nos forjou. Também somos livres para representarmos outro papel nesta sociedade injusta. Somos livres para não agredir, para não participar desta exploração, porque um dia pudemos ver as outras faces que esta cultura da dominação esconde e ela esconde muita dor e crueldade que muitos ainda insistem em não perceber, por isto digo que nosso lugar não é o da agressividade, como alguns querem nos imputar.
Nosso papel e lugar que tentamos com muita dificuldade ocupar nesta sociedade que esconde o sofrimento dos inocentes é de ampliar os direitos que os mais desvalidos nesta relação ainda não têm. Apenas não queremos mais o sofrimento destes que não têm voz e quem os defenda. Não mostramos nenhuma mentira, apenas a dura realidade que não pode mais ser esquecida e escondida!
Na Páscoa aproveitamos para mostrar o que os grupos que celebram o renascimento evocado nesta época esqueceram, que é o sentido libertador que ela comporta, o sentido de renascer que ela anuncia. Nosso convite é de mudança, mudança de paradigmas para um mundo mais justo, mais harmônico e menos violento para com todos os seres!
Nesta Páscoa, lanço um apelo para nascer um novo mundo, gerando a paz e não a violência.
Celebre e respeite a vida em todas as suas formas.
Eliane Carmanim Lima,
P.s: sabemos que há mesmo nos espaços mais perversos, destes que perpetuam e alimentam a injustiça e exploração do forte sobre o fraco aquelas pessoas que também alimentam o mesmo ideal de reservar a todos o mesmo lugar de respeito que buscamos conquistar-lhes e com estas palavras gostaria de dizer que sabemos que estes aliados estão em vários locais, ainda que na maioria das vezes silenciosos, mas nos apóiam. Precisamos destes aliados que felizmente acrescentam força aos nossos ideais enquanto a cultura da paz e do respeito à natureza não germinar por toda a terra.
Falo no plural, porque hoje somos muitos, temos aliados mesmo que ainda sejamos vítimas de preconceito e retaliação sem espaços para respostas.
E antes que a ideologia (e aí não estou dizendo somente a força cultural) de alguém me “adjetive” sem me conhecer gostaria de informar que sou ativista de direitos dos animais humanos e não humanos. Não sou única com esta preocupação e muitos de nós igualmente ativistas em outras áreas. (A minha experiência tem mostrado que estas críticas geralmente provêm daqueles que tampouco são defensores dos grupos ou interesses que prefeririam que eu estivesse defendendo, porque os verdadeiros defensores de direitos humanos sabem muito bem o valor e o sentido de se opor contra a iniqüidade na busca de direitos para os que estão além de nossos interesses pessoais). Acho que este é o tom da verdadeira democracia.
Eliane Carmanim Lima
Porto Alegre, 20 de março de 2008.
"O mundo gira, não ao redor dos inventores de estrondos novos, mas à roda dos inventores de valores novos: gira sem ruído.” Friedrich Nietzche